Conto: A Verruga

“Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola
Geração Coca-Cola – Legião Urbana (1985)
O homem estava deitado numa espécie da maca, em uma sala completamente branca e sem janelas. Somente a porta verde-água quebrava a monotonia cromática do gesso das paredes. Sentia tubos e fios conectados ao corpo e podia ouvir o sutil ronronar de algum aparelho médico. No ar, o cheiro forte de álcool trazia a certeza de que tudo estava bem. Era uma sensação boa de estar sendo muito bem cuidado. Um conforto quase uterino.

Sem se levantar, apalpou coxa e sentiu que a verruga ainda permanecia lá, como um breve tumor que logo seria passado. Lembrou-se de como a esperança era importante e a vida era boa, mesmo num mundo sujo, violento e desleal. Quem quer que falasse de amor puro, verdade, honestidade e valores era imediatamente tratado como um anormal, um câncer, um marginal. Naquele último ano do século XXII, o importante era se dar bem a qualquer custo. Todo o resto era piegas.
Inesperadamente, o homem sentiu uma forte irritação vinda da verruga. O formigamento era tão intenso que coçar era quase uma obrigação. Esticando o braço, o homem coçou muito o pequeno caroço em sua perna. O alívio que suas unhas sem corte proporcionaram foi tanto que o homem relaxou e dormiu.
Mais tarde, médicos, luzes nos olhos e barulho despertaram-no bruscamente.
- Parece que tudo está bem – arriscou um dos doutores.
A vista embaçada pelo repentino despertar impediu que o homem visse exatamente quantas pessoas o

examinavam. Apenas sentia seus toques e luzes. Viravam-no e reviravam-no em uma avaliação interminável. Assim que se deram por satisfeitos, saíram da sala.
- O senhor teve uma recaída, mas vai melhorar – disse o último médico, antes de fechar a porta.
O homem sentiu-se bem com a notícia. Ainda sem enxergar , coçou mais algumas vezes a verruga e disse para si mesmo:
- Eu devia ter escolhido um hospital melhor. Mereço cuidados mais refinados. Este maldito lugar não está à minha altura.
As horas passaram lentamente naquele tédio hospitalar onde a única distração era tentar interpretar os sons dos corredores exteriores. Sem ter muito o que fazer, o homem decidiu verificar o estado de sua enfermidade. Esticou o braço e tentou tocar a verruga, mas, ao fazê-lo, um arrepio intenso tomou conta de seu corpo. O pequeno pedaço de carne, que antes media não mais que o tamanho de um feijão, estava com as proporções de uma bola de tênis. Desesperado, o homem gritou e ergueu o tronco para ver a aberração que se formava em sua perna. Perdeu o equilíbrio e caiu da maca. Antes de desmaiar, a última coisa que viu foi a pulsante e escamosa verruga secretando grande quantidade de pus quente, espesso e amarelado. Gritou de pavor até cair na inconsciência.
Mais tarde, despertou de bruços. Estavam examinando-o novamente. Apertos, comentários, solavancos e empurrões. Ouvia instrumentos metálicos tilintarem ao serem pegos e largados como talheres em um refeitório. Seria uma cirurgia?
- Há perigo de crescer mais? – perguntou um dos médicos.
- Negativo – respondeu o outro aplicando-lhe uma injeção.
Anestesia. Uma forte vertigem tomou conta do homem que novamente desmaiou para só despertar três horas depois. A perna latejava e estava quente. Teriam extirpado, de vez, a verruga? Arriscou olhar e o que viu foi terrível. O que antes era uma simples verruga, agora estava com o diâmetro de uma bola de basquete. Como crescera tanto em tão pouco tempo? Confuso, o homem começou a chorar. O choro, então, virou desespero e o desespero explodiu num grito:
- O que está acontecendo? O que é isso?!
- Alimento! Preciso de alimento! – uma voz fria e fraca, distante como o vento ecoou pela sala.
- Qu-quem disse isso?
- Você sabe… – respondeu, desta vez com certo tom irônico.
- Essa voz.. verruga? Impossível! Devo estar maluco!
Não houve resposta. Com todo o rancor que podia sentir, o homem gritou:
- Maldito hospital! Malditos sejam esses médicos incompetentes!
A voz voltou mais enfática:
- Isso! Alimento! Estou doente, muito doente…
- Pare de falar! – pediu o homem. Em sua mente, pensamentos pútridos e mórbidos se misturavam com fúria e medo.
A voz vinda da verruga agradecia. A verruga crescia…

Sem perceber a correlação, o homem urrava contra o mundo e contra a vida. Cada manifestação vinha carregada de sentimentos odiosos que eram prontamente recebidos e reverenciados pela mórbida voz em sua perna.
Meia hora depois, a verruga já estava do tamanho do homem que, exaurido, sentia todo seu sangue esvair-se para o gigantesco tumor. Enquanto morria, num último impulso destrutivo, o homem perguntou à verruga:
- Quem é você, desgraçada? – desta vez, era a voz do homem que estava fria, fraca e distante.
Então, a verruga, firme e vigorosa respondeu:
- Eu sou o inverno da humanidade, a nova raça dominante. Você é passado, fóssil despreparado para a maldade que surgiu e virou alimento. Sua espécie foi um erro passageiro, uma piada para as crianças do futuro. Você é uma sombra que desaparece por causa da forte luz de novos seres que chegaram para silenciar as fraquezas do passado. Há alguns séculos, nós nos alimentamos das angústias, dores, ódio e repressão causadas por vocês mesmos. Como nódulos, nos instalamos como pequenos tumores malignos e fomos ignorados como meras doenças. Assim, como pequenos avarentos, fomos espalhando nossos fétidos esporos por toda a sua raça.
Após ouvir a sentença daquele imponente ser, o homem fraco e moribundo sentiu a fortíssima dor do desprendimento e – como um parto grotesco – a verruga separou-se definitivamente do homem já em estado terminal. Completamente mutilado, o homem presenciou a derradeira cena daquela macabra pantomima: passos apressados no corredor e a entrada dos médicos na sala.
Para o espanto do homem, todos eram verrugas.
E o homem entendeu porque não tinha lembranças de sua vida, nem nome e nem visitantes preocupados na sala de espera. Enfim, o homem percebeu que ele era a doença. Ele era a deformidade genética que atacava aquela nova raça como a humanidade havia sido atacada no passado. Agora, porém, não havia mais humanidade na Terra.
- Não disse que logo você ficaria bom?
- Obrigado, doutor! – respondeu o estranho ser que havia acabado de se curar da doença-homem.
A porta verde-água se fechou devagar e o homem – lixo hospitalar desprezível – balbuciou com todas as sua energia restante:
- Malditos!

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