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Conto: Vinte e duas estrelas


“Dream lover, until then I´ll go to sleep and dream again That´s the only thing to do Until my lover’s dreams come true”

Dream Lover – Bobby Darin (1959)


Andei pelo centro da cidade, aparentemente, sem rumo. Não havia destino certo, mas meus pés caminhavam com segurança, conduzidos sem dúvida quanto à chegada. Sempre achei o centro abafado, cheio de prédios altos, ambulantes e pessoas apressadas, mas, naquele dia, algo estava diferente. Aquele não era o tipo de pessoa que eu costumava ver. Parei em frente a um edifício comercial branco, desgastado e com incontáveis janelas antigas. Uma olhada para cima revelou a altura e atiguidade da construção. Sem saber exatamente o motivo, entrei no prédio.


Estranhamente, avancei pela construção, com crescente curiosidade. A escada suja e as paredes escuras eram apavorantes, mas não representavam obstáculo real para que eu chegasse ao meu destino. Diversos andares ficaram para trás até que parei e, com objetividade e determinação, invadi um determinado conjunto. Era a recepção de um escritório retangular que, provavelmente, não passava por reforma desde a década de 1980. As paredes brancas há muito pediam pintura; na lateral direita, um antigo banco de couro rasgado mostrava a fugitiva espuma que abandonava suas entranhas; A parede esquerda sustentava dois vasos de plantas altas e uma mesa de madeira onde uma moça datilografava compulsivamente. Era uma garota de traços bonitos, mas pouco valorizados pelos óculos e cabelo preso em coque por um lápis.


- Pode entrar. Ela está lá dentro – disse sem dirigir o olhar a mim.


Sem nada responder, caminhei até porta marrom-descascada na parede oposta e a abri. Dificilmente conseguirei explicar a diferença entre a recepção e a sala em que acabara de entrar. Nesta segunda, uma grande riqueza de detalhes que eu não havia visto naquele dia todo encheu meus olhos. Resumo sua descrição como uma sala bem menor que a recepção, com paredes amarelas, carpete verde, muitas prateleiras com livros de diversos tamanhos estavam empilhados desordenadamente e uma mesa em que clipes, canetas, borrachas e outros materiais de escritório se sobrepunham em uma verdadeira suruba de papelaria. Atrás da mesa, uma enorme janela iluminava a pequena saleta e servia de vista para uma garota que, de costas para mim, olhava fixamente para as ruas lá embaixo.


- Você está me esperando? – perguntei.


Ela se virou e me olhou profundamente. Tinha estatura mediana e aparentava aproximadamente vinte anos. Sem a menor dúvida, devia chamar a atenção por onde passava, mas não era a mais bela das mulheres. Tinha cabelos castanhos claros, olhos pretos e uma boca que prometia sorrisos e beijos, mas talvez, cumprisse apenas os sorrisos. Apesar de ser uma figura comum, dessas que vemos aos montes nas entradas das universidades, a garota tinha dois pontos interessantes e especiais: primeiro, ela parecia mais presente e muito mais humana que a recepcionista da sala anterior e as demais pessoas com as quais cruzei naquele dia. Segundo, eu sentia que mesmo sem nunca tendo a visto antes, havia uma conexão entre nós, uma promessa não dita, um compromisso a ser cumprido impreterivelmente nesta vida.


Usava um vestido florido azul escuro que a tornava ainda mais comum e as leves olheiras em sua pele branca passavam a impressão de nervosismo. Em seu pulso, a delicada tatuagem de uma pequena borboleta azul formada por estrelas a deixava mais feminina, mesmo naquele momento de tensão.


Sem contar, eu sabia que havia vinte e duas estrelas no contorno da pequena borboleta.


Tornei a perguntar:


- Você está me esperando?


- O que está acontecendo? – me perguntou em tom desesperado.


- Não sei. Como assim? Está acontecendo alguma coisa?


- Quem é você? Por que tudo está assim? O que está acontecendo?


Quanto mais perguntava, mais nervosa ficava e mais violentamente gesticulava.


- Calma – pedi, sem convicção – está tudo bem.


Menti, afinal, naquele momentu eu estava tão confuso quanto ela.


- Tudo está estranho e desbotado. Por que não chega logo a hora de eu ir embora? Onde estão meus pais? Eles ficaram de me buscar hoje. Por que ninguém acredita em mim?


- Acreditar? Acreditar em quê?


- Vem cá… – disse, me puxando pelo braço até a janela. Dei a volta na mesa e me coloquei ao lado dela. Podia sentir seu perfume.


- Olha lá embaixo...


Coloquei minha cabeça para fora junto com a dela, mas não vi nada de especial. Movi a cabeça em busca de algo inusitado que, talvez, ela quisesse que eu presenciasse.


- Veja as pessoas como são estranhas – apontou.


Olhei e tentei ao máximo acompanhá-la em sua percepção, mas não consegui.


- Repare nos carros, veja... São sempre os mesmos! As pessoas também são as mesmas e até as nuvens se repetem!


Foi preciso certo esforço até que comecei a entender o que a garota me mostrava. Havia realmente algo bizarro ocorrendo. Os carros, na rua, eram apenas de três ou quatro modelos que se repetiam constantemente de maneira alternada e as pessoas – e isso me causou terrível mal-estar - também estavam limitadas a alguns perfis: homens de terno com pastas pretas na mão, jovens de camiseta branca, mulheres de saia branca e mais algumas poucas variações. Circulavam para todos os lados em grupos mistos, sozinhas ou em diversas combinações, mas sempre individualmente idênticas como personagens de jogos eletrônicos ou figurantes de filmes de baixo orçamento.


Como aquilo era possível? Como eu não havia notado antes?


Assustado, afastei-me da janela e corri para a recepção, enquanto a garota batia na mesa e gritava:


- Eu não me lembro do que fiz hoje de manhã! Não sei como vim trabalhar, por favor, acredite em mim! Por que ninguém acredita?

O cômodo da recepcionista pareceu estranho. Nada havia mudado, porém, a breve conversa com a garota havia me aberto os olhos para os detalhes, ou melhor, para a ausência deles. A secretária, o banco de couro e os vasos tinha a mesma aparência falsa dos carros e pessoas na rua. Minha percepção estava mudada. Lembrei-me do corredor, das escadas, do prédio e da rua. Como não havia notado? Estaria, naquele instante, contaminado pelo vírus da loucura daquela garota confusa ou realmente o havia uma irrealidade permeando o mundo? Antes que eu entrasse em completo desespero, um homem entrou pela porta. Vestia uma larga camisa azul claro, calças folgadas de linho e calçava algo parecido com sandálias de couro. Sua expressão era serena e seus olhos aparentavam sabedoria.


- Olá.


- O que está acontecendo? Quem é você? – perguntei, atordoado.


- Calma, não sou um fantasma, sou gente como você – explicou com certo tom irônico, porém simpático e seguro, o que me acalmou.


- Fique tranquilo, Max. Nada aqui pode ou vai lhe fazer mal. Inclusive, você nem está realmente aqui. Neste momento, você está em casa, dormindo em sua cama.


O fato de o homem saber meu nome e as informações que ele tranquilamente me passou me chocaram no primeiro instante, mas, em seguida, me fizeram enxergar que aquela era a melhor, mais lógica e clara explicação: eu estava sonhando. Sim. Eu havia deitado há pouco e sabia exatamente o que faria na manhã seguinte. Percebi que não havia realmente saído de casa e me dirigido ao centro da cidade, além disso, não ouvia ruídos ou sentia odores e também não havia me cansado ao subir tantos andares daquele antigo edifício. Era absolutamente incrível. Enquanto não tinha consciência de que estava sonhando, tinha a mais firme certeza de que estava acordado. Agora, até o ar se tornava mais onírico.


- Calma – disse o homem – não se exalte e nem analise muito seu estado atual, senão você acordará. E, nesse momento, não queremos isso, certo?


- Não, não! – falei. E era verdade. Tudo o que eu menos queria era que aquilo acabasse. Respirei fundo, ou acreditei ter respirado, e segui o conselho do homem, mantendo a estranha e maravilhosa experiência em curso.


- Você está em um sonho translúcido. Muitas pessoas passam por isso todos os dias em todos os lugares do mundo.


- É incrível! Você também está sonhando ou somente faz parte do sonho? – perguntei.


- Ótima pergunta. Eu também estou em minha casa, dormindo e sonhando, assim como você. Note, inclusive, que estou de pijama.


Olhei para a recepcionista que datilografava em frenesi e, antes que eu perguntasse, o homem explicou:


- Não, ela não está sonhando como nós. Ela nem é real. Apenas faz parte dessa alegoria, como todas as construções, objetos e pessoas na rua.


- Sim...dá para notar, mas…e a moça nervosa na outra sala? É imaginária ou real como nós?


O sorriso e a simpatia iniciais desapareceram do semblante do homem que respondeu em um tom mais sóbrio:


- Não, Max, ela não é uma alegoria como os demais.


- Então, ela está sonhando também?


- Não. Diferente de nós dois, ela, na verdade, está em um estado de coma profundo.


- Coma? Meu Deus...


- Exato. Ela foi vítima de um acidente há alguns meses e, nesse instante, se encontra em um hospital, mantida viva graças a aparelhos. Pobre garota! Está assim há tanto tempo que nem se lembra mais da realidade, do acidente ou de como é estar acordada.


Diante da estranha notícia, encostei na parede suja e inexistente atrás de mim, enquanto o homem prosseguia em sua explicação:


- Desde o acidente, ela se colocou nessa representação de seu escritório, sem perceber que tudo o que lhe parece falso é, na verdade, uma tentativa inútil do cérebro de copiar a complexidade da realidade. Ao mesmo tempo, o fato de ela perceber e estranhar tudo é um sinal de que ela pode despertar. Se ela entender e reconhecer que tudo isso é apenas sua mente, ela irá, imediatamente, despertar do coma e encontrar seus pais e irmão ao lado da cama, apreensivos – concluiu.


- É? Então é possível que ela volte pra realidade?


- Sim. Possível e muito necessário. E você foi trazido aqui para ajudá-la.


- Eu? Ajudá-la? Como assim?


- Não me foi dado tempo suficiente para explicar detalhadamente a razão de você ter essa missão de convencê-la de que tudo é um sonho e trazê-la à realidade. Só posso adiantar que você tem uma forte ligação com a garota. Algo muito importante e raro. Esse é o motivo pelo qual você foi trazido e sintonizou tão facilmente este sonho. Na verdade, quase todas as noites nos últimos meses, mesmo que você não se lembre ao acordar, você vem aqui a este prédio. Você já esteve aqui muitas e muitas noites. Hoje, no entanto, eu precisei intervir, porque a situação se agravou.


- Agravou? Como assim?


- Acorde-a, Max, seja rápido e faça isso hoje – pediu o homem, enquanto saía pela porta.


- Rápido como? Por que hoje?


- Porque hoje os aparelhos que sustentam a vida dela serão desligados.


- Como assim? – perguntei e, ao tentar alcançá-lo, me deparei com corredor vazio.


Retornei à recepção devagar e me aproximei da atarefada recepcionista-alegoria. Aparentemente incomodada, parou de datilografar e me olhou como esperasse que eu dissesse algo. Acariciei seu rosto e perguntei:


- Como é não existir?


Como um ator de um único papel, pego em improviso, ela voltou às suas tarefas. Novamente acreditei ter respirado profundamente, pois o ar daquele lugar imaginário também não existia – e parti para dentro do escritório para tentar cumprir minha missão. Assim que entrei, tive outro choque. A garota confusa não estava mais na janela. Ainda abalada, a moça se encontrava encostada na mesa e, para meu espanto, conversava com alguém: um rapaz que parecia consolá-la com abraços e carícias.


- Obrigada, muito obrigada. Sempre que você vem aqui, fico mais calma. Eu te amo – disse ela.


Seria ridículo descrevê-lo, pois o rapaz com a garota era eu. Ou melhor, uma cópia minha manifestada sem detalhes como tudo naquele sonho, sem imperfeições de pele, pelos. O subconsciente da garota estava, constantemente, criando aquele personagem com a minha aparência para fazê-la sentir-se bem. Mas, por que eu? De onde ela me conhecia? Por que eu me sentia tão próximo a ela?


Então, a minha cópia me fitou nos olhos, sorriu e disse:


- Se é estranho e trágico, por que não pode ser belo?

Os olhos da minha cópia de sonhos eram inteiramente pretos, o que tornou a cena tão dantesca que me assustou. O susto, por sua vez, arrancou-me do sonho imediatamente. Despertei suado e com o coração acelerado. Eu havia me deitado há apenas três horas, mas não consegui mais dormir naquela madrugada. Durante todo o dia lembrei-me daquele sonho marcante. Teria realmente sido só isso? Um sonho? Na noite seguinte, dormi com o mórbido sentimento dos assassinos e negligentes que tiveram a vida de alguém em suas mãos e deixaram passar pelos dedos.


Era a certeza de que, naquele dia, em algum lugar, uma garota de altura mediana com, aproximadamente, vinte anos, que chamava a atenção por onde passava (mas não era a mais bela das mulheres) com cabelos castanhos claros, olhos pretos e uma boca que prometia sorrisos e beijos, mas que agora não cumpriria nem mais os sorrisos, teria os aparelhos que sustentavam sua vida desligados. Acredito que fui a última pessoa real a falar com aquela figura comum, dessas que vemos aos montes nas entradas das universidades. Talvez, tenham escolhido a pessoa errada para salvá-la, talvez, fosse mesmo impossível tirá-la do coma. Não sei ao certo. Nunca saberei.


Só sei que toda noite tenho vontade de abraçá-la e consolá-la, como meu duplo onírico estava fazendo no fim daquele sonho. Tentei, mas nunca mais consegui me conectar a ela. Toda noite, tenho vontade de dizer àquela garota de vestido florido azul escuro que levava no pulso uma delicada tatuagem de borboleta formada por vinte e duas estrelas:


- Eu acredito em você

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