Conto: Ele chegou

“E da boca do dragão, e da boca da besta e da boca do falso profeta vi sair três
espíritos imundos, semelhantes a rãs”
Apocalipse 16:13
Há uma semana, tudo começou.
Eu dirigia pela estrada com minha esposa, Fernanda, e meu filho, Mateus, de quatro anos. Durante o trajeto, ríamos dos disparates infantis da criança que nos surpreendia com sua inteligência e humor. Em certo momento, meu filho contou que havia caído e raspado o joelho. Minha esposa, como força de expressão, exclamou:
- Machucou? Que pecado!
Estranhamente, Mateus calou-se por instantes. Então, soltou o cinto, foi até o meio dos bancos e disse:
- Não, mãe, cair não é pecado. Pecado é trair Deus.
Eu e minha esposa nos olhamos espantados. O pequeno continuou:
- Quem gosta de Deus, está bem. Quem não gosta, vive em pecado.
- É verdade, Mateus – comentei, tentando encerrar o assunto, mas o garoto não estava disposto a concluir ali seu sermão.
- Moisés disse ao Senhor: “O povo cometeu grande pecado fazendo para si deuses de ouro”.
Espantei-me com a citação, provavelmente bíblica, vinda de uma criança tão pequena. Questionei minha esposa a respeito da escola, mas ela estava tão surpresa quanto eu, pois não tínhamos conhecimento de que seriam ministradas aulas de religião.
- Amanhã falarei com a diretora.
No meio da manhã seguinte, minha esposa telefonou-me no trabalho para conversarmos a respeito de finanças e outros temas domésticos. Findos os assuntos práticos, Fernanda comentou:
- Falei com a dona da escolinha, hoje.
- É? E como ela está? – perguntei, afinal, nem me recordava do assunto da noite anterior.
- Falei com ela sobre as aulas de religião.
- Ah, é? E como foi? O que ela disse? – tentei disfarçar, não deixando notar que havia me lembrado do assunto somente naquele momento.
- Bom, ela me disse que realmente não há aulas de religião na escola e que provavelmente Mateus ouviu aquilo de algum colega.
- Não há problemas quanto a aulas de religião – afirmei – só não quero um pastor mirim andando em casa.
- É, eu também. Mas ela disse que é normal a criança falar de Deus e de religião nessa idade, mas que não há aulas desse tipo na escola. Ela prometeu, inclusive, perguntar aos professores a respeito.
- Ótimo! Assunto resolvido – concluí, tapando, naquele momento, um gigantesco sol com uma minúscula peneira.
Após o almoço, visitei um cliente dono de uma livraria. Enquanto aguardava, aproveitei para olhar alguns livros. Em uma das prateleiras, nos mais variados tamanhos, formatos e cores, estava ela: a Bíblia Sagrada. Apanhei um exemplar e folheei ao acaso tentando recordar o que meu filho havia falado no carro. Disse baixinho para mim mesmo:
- Noé disse para Deus…Jesus disse que é pecado, deus feito de ouro…
- “Assim, tornou-se Moisés ao Senhor e disse: Ora, este povo cometeu grande pecado fazendo para si deuses de ouro”.
Era meu cliente, o dono da livraria.
Sorri e recoloquei o livro na prateleira, mas ele insistiu:
- Pegue para você. Pode pegar. É sempre bom ver alguém interessado no livro mais vendido e menos lido no mundo.
Sorri, peguei a Bíblia e perguntei:
- Essa parte que você citou…onde está?
- Êxodo 32:31. Mas eu posso indicar passagens muito mais interessantes. Mas vamos tratar de negócios?
Guardei o livro em minha pasta acompanhei-o até seu escritório para ajudá-lo nos detalhes finais da grande feira de livros infantis que ocorreria os próximos dias.
À noite, durante o jantar, tudo transcorria normalmente, até que Mateus perguntou:
- Pai, isso é vinho?
- Não, é groselha, filhão, por que?
- O vinho é o sangue do Cristo e o pão é a carne, não é? – disse, erguendo o copo como um padre faz durante uma missa.
Engasguei. Minha esposa levantou-se e bateu em minhas costas.
- Mateus, quem te ensinou isso? Foi na escola?
- Foi – respondeu, baixando o copo em um gesto ritualístico.
- Filho, qual é o nome da professora? – perguntou minha esposa.
- Que professora, mãe?
- Que está ensinando essas coisas sobre Papai do Céu.
- Não foi professora. Foi o menino da minha classe, meu amiguinho Lúcio – a dona da escola estava certa em afirmar que Mateus aprendera sobre religião com um colega.
Mais tarde, conversando com minha esposa, decidimos deixar essa história de lado. Não havia problemas maiores em Mateus falar de religião. Aquela fase passaria rápido, se não nos prendêssemos a ela. Grande erro de julgamento. Na noite seguinte, ao chegar em casa, fui recebido na garagem por minha esposa completamente aflita:
- Corre! É o Mateus! Aconteceu alguma coisa com ele!
Larguei meu carro aberto e entrei em casa imediatamente. Para meu espanto, deparei-me com Mateus sentado no chão da sala com as pernas cruzadas e semblante sereno. Antes que eu perguntasse qualquer coisa, meu filho cumprimentou-me:
- Olá, papai. Como foi seu dia?
- Mateus, está tudo bem?
- Sim, papai. Muito bem, obrigado.
Apesar de estar fisicamente intacto, seu tom de voz e seus trejeitos estavam sem energia, menos tensos e inquietos como são os das crianças dessa idade.
- Filho, fala comigo. Fizeram algo com você?
Ele riu suavemente, colocou-se em pé, veio até mim e me puxou, indicando que iria cochichar em meu ouvido. Baixei a cabeça até seus pequeninos lábios que disseram:
- “O que gera um tolo para a sua tristeza o faz; e o pai do insensato não tem alegria”, isso está nos Provérbios.
Levantei-me, nervoso e gritei:
- Filho, quem está ensinando essas coisas?
- Pai, eu já disse, foi o Lucio, meu amiguinho lá da escola.
- Pois eu vou te mudar de sala. Esse garoto está fazendo mal a você.
Minha esposa entrou em casa e encarou Mateus com medo, como se fosse um animal. Liguei imediatamente para a escola:
- Dona Miriam? Aqui é o Alan, marido da Fernanda, pai do Mateus. Como vai? Gostaria que meu filho estudasse em outra sala, com outra turma.
A mulher não se opôs a mim, apenas questionou o motivo pela explosão. Respondi:
- É um tal de Luis, Lúcio, não sei. É um coleguinha que está enchendo a cabeça de meu filho com citações bíblicas e ela está muito estranha.
A proprietária da escola respondeu-me que conhecia o garoto e que ele era completamente normal, saudável e inteligente. Afirmou, ainda, que nunca havia presenciado o garoto dizendo nada estranho. Ainda assim perguntei:
- Mas, Dona Miriam, quem é esse garoto? É algum filho de pastor?
Mateus aproximou-se de mim, colocou as mãozinhas sobre as minhas e respondeu:
- Ele é a Rocha, a obra perfeita, porque todos os seus caminhos são justos; Deus é a verdade e não há nele injustiça. É justo e reto.
Olhei com terror para aquela criança que, nem de longe, lembrava meu filho. Naquela noite, jantamos e dormimos cedo. Na manhã seguinte, fiz questão de levar Mateus à escola bem cedo. Pedi que ele apontasse o tal coleguinha dentre as crianças que entravam. Após uma hora de espera, percebi que o garoto não havia ido à escola naquele dia. Então, levei Mateus até a sala da diretora e reafirmei meu pedido de que ele deveria estudar em outra sala:
- Não precisa ser hoje. Pode ser amanhã. Hoje, notei que o tal Lúcio não veio.
- Lúcio? – perguntou Dona Miriam – Ele veio sim. Já está na sala de aula com a turma.
Em um impulso incontrolável de curiosidade e temor, larguei Mateus e Dona Miriam e corri até a classe de meu filho. Queria muito conhecer o pequeno pregador que havia doutrinado Mateus. Ao me aproximar da sala, pensei que a aula já havia começado, pois não havia nenhum grito ou sinal de bagunça normalmente causado por crianças de quatro anos. Enganei-me. Sob uma cadeira, cercado de crianças, estava um belo menino de cabelos castanhos e olhos azuis. Ele falava alto e todos ouviam atentamente:
- E todo o que tiver deixado casas, ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou filhos, ou terras, por amor do meu nome, receberá cem vezes tanto e herdará a vida eterna.
Entrei na sala deslumbrado, o menino me olhou, desceu da cadeira e, num leve sinal, fez com que as demais crianças se sentassem em silêncio. Então, veio até mim, apontou para si mesmo e disse:
- Qualquer que receber em meu nome um menino, tal como este, a mim recebe.
Fiquei sem palavras, extasiado pela suavidade paradoxalmente firme daquele jovem prodígio. Caí de joelhos. Lúcio colocou a mão no meu ombro e perguntou:
- Você sabe quem eu sou?
Não tive palavras. Meu coração bateu rápido e minha mente encheu-se de amor e terror.
- Olhe as minhas mãos e os meus pés, que sou eu mesmo. Apalpe-me e veja, pois um espírito não tem carne nem ossos, como eu tenho – Lúcio concluiu.
Corri de lá com o espírito em chamas, sem saber o que sentir ou o que achar. Seria ele algum santo? Seria Deus? Teria, Jesus, voltado à Terra? Passei pela sala da diretora e despedi-me sem convicção. Deveria tirar meu filho de perto daquela presença? Lembrei-me do dono da livraria, meu amigo e cliente, um homem sábio, bondoso e conhecedor da Bíblia e mistérios do ocultismo. Se alguém pudesse me ajudar a manter a sanidade, seria ele. Cheguei à livraria e detalhei toda história, implorando que ele me ajudasse. Após me ouvir com atenção, ele fechou a livraria e me conduziu até o fundo da loja, onde uma sala trancada guardava estantes empoeiradas, livros raros, gravuras antigas, teias de aranha e diversos objetos estranhos.
- Não se incomode com a sujeira. Só trago aqui estudiosos e clientes muito específicos. Aqui há raridades que fariam Umberto Eco reescrever O Nome da Rosa – brincou.
Reconheci volumes escritos em grego, latim, aramaico, egípcio, chinês e persa. Confesso que alguns livros e pergaminhos continham caracteres muito estranhos. Meu amigo comentou:
- Pelo pouco que você descreveu, esse menino usou citações bíblicas em todas as frases. Considerando que você não tenha exagerado em nada, estamos diante de quatro possibilidades.

Andou até uma mesa antigo, abriu um livro gigantesco e começou a folheá-lo.
- Ele pode ser o Cristo, em sua tão esperada segunda vinda. O que não creio, devido ao terror que ele lhe causou.
- E põe terror nisso. Você precisava ver os olhos dele. Entraram em minha alma.
- Ele também pode ser um falso profeta, ou seja, alguém que pregará como um cristão, mas suas palavras estarão cheias de mentiras. Mas se ele só citou a Bíblia, também não o classificaria como um falso profeta.
- Sim, mas, além de Cristo e o falso profeta, quais as outras duas possibilidades?
- Uma é o anti-Cristo, ou seja, a esperada Besta do Apocalipse encarnada. Ainda assim, há estudos feitos por mim e amigos meus do mundo todo de que o anti-Cristo já esteja entre nós há mais de vinte anos, dados os sinais. Por isso, creio que estejamos diante da quarta e pior hipótese.
Respirou fundo e olho para cima, como se procurasse no vazio algo que o consolasse.
- Ele pode ser o próprio demônio que foi liberto de seu cativeiro e chegou para consolidar seu império de mil anos.
Ele falava sério. Ao mesmo tempo que eu temia a possibilidade e acreditava em meu amigo, também ficava em dúvida cada vez que me lembrava da doçura encantadora do jovem Lúcio.
- O que devo fazer? Como saberei? – perguntei, temendo por meu filho e por minha alma.
- Este livro é uma dos poucos textos apócrifos da Bíblia que não foram destruídos. Existem apenas quatro cópias e somente a minha e a do Papa estão legíveis. Dizem que esta obra foi ditada pelo próprio Cristo para que ele seja reconhecido em sua volta. São diversas fórmulas ilustradas que ensinam a comprovar a divindade do ser.
- Então diga uma maneira, qualquer uma!
- Calma! Preciso traduzir isso. Mas antes de chegarmos a esse extremo, que tal se eu conhecesse esse pequeno notável que você tanto teme? De repente, uma simples olhada será suficiente.
Concordei e, horas mais tarde eu e ele esperamos na porta da escola, a saída de Mateus e de Lúcio. Estranhamente, todas as crianças saíram, exceto os dois. Perguntei por Mateus e uma professora respondeu que minha esposa havia pego o menino há algumas horas. Aproveitei para perguntar de Lúcio. A resposta foi ainda pior:
- Ele acabou de sair. Abri a porta para ele há alguns minutos.
- Impossível. Estou plantado aqui há quase duas horas e não o vi sair – respondi.
- Calma, senhor. Acho que o senhor se distraiu.
Antes que eu brigasse com a moça, meu amigo interveio:
- Qual é o seu nome?
- Adriana.
- Huuum, Adriana, o que você acha do jovem Lúcio?
Adriana enrubesceu. Notadamente sem-graça:
- A-a-cho? Co-co-como assim? Ah, sei lá, normal.
Meu amigo insistiu: