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Carta aberta a Marty McFly


O passado passou por cima

pensou paciente o passivo sapiente

Passou o passado, sem sapear

O passado passa, a pessoa não sente,

que o passado passou para passado

o presente

Luciano Milici

Bem-vindo ao futuro, Marty.

Desta vez, é o futuro verdadeiro, não aquele futuro do pretérito com carros voadores e roupas que se secam sozinhas. É o futuro pé no chão, o futuro raiz, o futuro moleque.


Sabe, Marty, estou esperando sua chegada desde meus dez anos, quando eu era um garoto sonhador que gostava de escrever e morava no bairro do Ipiranga, na cidade de São Paulo, no Brasil. Naquele tempo, eu me lembro, vocês planejavam arrecadar dinheiro para salvar o relógio da torre. Hoje, nossas ambições são maiores: queremos salvar o planeta, os animais, as minorias, nossa alma. O relógio da torre, que segue quebrado até hoje, faz muito mais sentido para nós que vivemos sem tempo para nada do que para você, que dirige o próprio tempo pelo volante do DeLorean.


"O relógio da torre, que segue quebrado até hoje, faz muito mais sentido para nós que vivemos sem tempo para nada do que para você, que dirige o próprio tempo pelo volante do DeLorean"





Por falar em tempo, você veio ao futuro para impedir que seu filho seja preso e que você seja demitido, não é? Pode ficar tranquilo, McFly. Hoje, com um bom advogado, você consegue tudo o que quiser. Desde tirar o filho da cadeia até alterar o passado de quem quer que seja, com rapidez e eficiência de darem inveja à mais rápida invenção de Doc Brown. E, quanto à sua demissão, sinto lhe informar, mas a crise é presente. Conselho: abra uma consultoria, torne-se coach ou comece a criar conteúdo para a internet.


Internet, por sinal, é algo que não dá para explicar assim, em uma simples carta.


Em 2015, fazemos compras sem sair de casa, falamos com o mundo sem sair de casa, alugamos filmes sem sair de casa, mas, estranhamente, todos só exibem fotos em viagens. Parece que todo mundo está sempre viajando. Ainda assim, acostume-se com reclamações exageradas às segundas-feiras e festejos igualmente desmedidos às sextas e nos períodos de férias.







#partiuferias










Sem contar que ninguém é infeliz em 2015. Bom, pelo menos é o que as redes sociais mostram. Ninguém toma injeção, ninguém sofre, ninguém se deprime. Todos somos bonitos, saudáveis, bem casados e, como já citei, viajantes. Sobre as redes sociais - esqueci de lhe explicar – é como chamamos as rodas de amigos hoje em dia, com a diferença de que não são apenas três ou quatro amigos em um local para conversar, mas milhares de contatos que falam sobre todos os assuntos ao mesmo tempo para todos. Legal, né? Opinião, inclusive, é algo abundante em 2015. Ficamos mais inteligentes: todo mundo sabe muito sobre tudo sem nunca ter estudado a respeito. Não importa o assunto, todos falam demais e se atacam gratuitamente dividindo todas as relações em “nós contra eles”. Sério. E o mais curioso é que mesmo com todas essas divisões, as pessoas parecem querer as mesmas coisas, exceto se unirem.


Eu me lembro também que você esteve em 1955 e deve ter notado que tanto naquela década, quanto em 1985 e hoje em dia, os mais velhos têm a tendência de acreditar que antigamente era melhor, enquanto os mais novos persistem em crer que o melhor está por vir. Engraçado como ninguém, em nenhuma linha cronológica, está convicto de que o melhor é o agora. Ainda assim, o que não falta são imagens com mensagens como “Viva o presente” e “Carpe diem”.


"E o mais curioso é que mesmo com todas essas divisões, as pessoas parecem querer as mesmas coisas, exceto se unirem"

Sobre música, assim que retornar a 1985, aguarde uns cinco ou seis anos e você verá os rockstars vindo de Seattle com suas camisas xadrez e seus acordes crus. Depois, tudo ficará muito confuso na indústria fonográfica. Teremos CDS, MP3, iPods, pendrives, gravações na nuvem até, estranhamente, voltarmos ao vinil. Isso mesmo, Marty, agora o moderno é ter um bom toca-discos em casa. Talvez você não esteja preparado para isso ainda, mas seus filhos vão adorar. Conselho: guarde aquele LP original do Thriller que ganhou em 1982.


Eu me lembro que, em 1985, os amigos se encontravam em fliperamas para jogarem as novidades eletrônicas. Hoje, os fliperamas ficam na sala de casa e os amigos continuam jogando conosco, só que cada um na sua própria casa.


Também não mandamos mais cartas. O lance agora é o e-mail. Um tipo de carteiro que nunca entra em greve mas que, às vezes, coloca algumas cartas importantes em uma caixa especial que você nunca abre, cheia de propagandas. Essa mesma caixa usamos como desculpa para alguns atrasos: “Ah, foi parar no SPAM e não vi”, dizemos.


Você já deve ter notado que não temos carros ou skates voadores, porém, temos telefones muito legais que fazem praticamente tudo, inclusive ligações. Eles começaram grandes, chamados tijolões. Então, foram diminuindo com o tempo até ficarem minúsculos. Aí, voltaram a crescer, só que quadrados e achatados, como telhas. Designers de telefone devem ter fixação por construção civil.







"Designers de telefone devem ter fixação por construção civil"











Marty, sabe aquilo que o Biff fazia com seu pai em 1955? Hoje, essa prática terrível tem um nome: bullying. Nos últimos anos, o bullying passou a ser combatido por toda a sociedade, mas ainda não acabou. Inclusive, muita coisa que disseram que ia acabar, não acabou. O mundo, por exemplo. Esteja preparado para 1997, 1999, 2000, 2008, 2012, 2013 e, inclusive, 2015 como datas para o apocalipse. Besteira. Assim como o céu e o inferno, o fim do mundo é algo pessoal. Todos os dias, o mundo acaba e recomeça para muita gente, em muitos lugares. Guerras, desastres naturais, violência em geral e epidemias são pequenos pedaços de fim de mundo que enfrentamos todos os dias, mas não nos damos conta, porque não ligamos para os trailers, esperamos ansiosamente a estreia oficial.


E por falar em estreia, não se assuste ao descobrir que Exterminador do Futuro, Mad Max e Star Wars estão em cartaz. Você está, sim, em 2015. É que não tem nada mais atual que o revival. Eu, inclusive, estou tentado a lhe pedir uma caroninha rápida até dezembro próximo para assistir à estreia do novo Star Wars. Esse será o quarto filme da franquia além dos três que você conhece, mas, Marty, não se anime muito com a segunda trilogia e, quando for assistir, prepare-se para o Jar Jar Binks.


Note que não temos Tubarão 19 em 3D dirigido pelo filho do Spielberg como estava previsto, mas temos Sharknado, que é um tornado de tubarões, serve? Temos também vários filmes feitos em primeira pessoa - com a câmera toda tremida -, e muitas, muitas produções sobre heróis. Diferentemente da década de 1980, quando nossos heróis eram você, o Ferris Bueller (calma, em 1986 você saberá quem é) e o Indiana Jones, hoje, temos muitos super-heróis poderosos saídos dos quadrinhos. Talvez, essa onda de heróis da ficção esteja aí para compensar a falta deles na vida real. Ah, isso me lembrou: teria como dar uma passadinha em Ímola, na Itália, em 1994, para impedir um certo piloto brasileiro de participar de uma certa corrida? Depois explico melhor. Sei que é perigoso mexer no tempo. Aprendemos isso com o Doutor Brown e também com outro Doutor, um que viaja em uma cabine telefônica azul. Por isso, não posso lhe adiantar muito dos acontecimentos pós-1985. Guarde apenas essas informações e fique atento: Chernobyl, 11 de setembro, Bin Laden, Maratona de Boston, Columbine, tsunami, usina nuclear de Fukushima, George Bush (pai e filho), Milli Vanilli, Mal de Parkinson e 7x1. Não...pensando bem, risca o 7x1. Foi pouco.



"Ah, isso me lembrou: teria como dar uma passadinha em Ímola, na Itália, em 1994, para impedir um certo piloto brasileiro de participar de uma certa corrida? Depois explico melhor"




Enfim, não quero tomar mais o seu tempo. Sei que você o tem de sobra, mas falar sobre 2015 não é tão bom quanto viver aqui. Por isso, vá, viva e experimente por você mesmo as grandes evoluções tecnológicas, médicas e sociais.


Por fim, Marty, quero lhe pedir um único favor: quando voltar a 1985, procure no Brasil, em São Paulo, no bairro do Ipiranga, um garoto sonhador de dez anos que gosta de escrever. Ao encontrá-lo, diga a ele para aproveitar a vida sem pressa, cultivar mais seus amigos e, principalmente, passar mais tempo com o pai.


Ah, e se não for pedir demais, entregue a ele um papel com a seguinte palavra:


Google.



Grande abraço e curta seu presente aqui no futuro.



Luciano Milici

#Crônica #DeVoltaparaoFuturo #Ficção #Carta #Senna #MartyMcFly #Humor

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